Quero um pouco de tudo aquilo que nos tira da realidade.
Os olhos fechados contra o sol. A janela de um avião. A vida
por trás das janelas acesas à noite ou dos rostos na rodoviária. As formas em movimento
no fundo da piscina. Os sons do universo paralelo no fundo do mar. Quase todos
os livros. O céu. Um café no Campus Centro.
***
É pretensão minha imaginar o que outra pessoa diria? Bom,
todo escritor precisa dessa pretensão. Era mais ou menos o que eu pensava
quando ele entrou na sala. E na verdade não importa se na realidade a pessoa
nunca diria aquilo – porque não é realidade. É ficção.
Usava roupas parecidas com as que eu me lembrava de ver nas
eletivas da faculdade. Calça jeans escura dobrada nos tornozelos, calçados que
eram um híbrido entre tênis e botinas, camisa xadrez com as mangas também
dobradas, pulseiras de couro no pulso esquerdo, óculos. Os grisalhos, antes
restritos à região próxima das orelhas, tinham se espalhado.
Faltavam dez minutos para o horário marcado, a sala ainda
não estava cheia. Ele largou a pasta sobre a mesa, separou umas folhas e alguns
livros e olhou ao redor. Tentei ler os títulos pela lombada, mas a miopia não
deixou. Reconheci Deleuze e Borges. Tentava decifrar um terceiro quando percebi
que ele estava olhando pra mim. Olhei de volta. Sorri. Tudo bom? Veio na minha
direção. Me reconheceu. Levantei para cumprimentar. Falamos rapidamente e ele puxou
um dos livros. Já leu? Faulkner. Não, li um outro dele, bem curtinho, esse
ainda não. Leitura obrigatória. Fiquei ali de pé, folheando o livro. Teria
começado a ler ali mesmo.
- Gostou? Leva pra ti. Tenho outra edição igual em casa.
***
Quando a aula acabou, fui agradecer e me despedir, momentos
assim me faziam sentir falta da faculdade, encontros para estimular o
pensamento fora do eixo que só vivíamos nas cadeiras dele. Perguntou se eu
tinha algum compromisso – ele tinha outra aula para dar em duas horas, podíamos
tomar um café nesse tempo se eu não estivesse com pressa. Eu não estava.
Perguntei da filha pequena. Ele comentou que leu meu TCC e
perguntou se eu não pensava em Mestrado. Disse que não. Muito tempo, muita
entrega. Só queria umas aulas assim, de vez em quando, não deixar a cabeça
parar.
- Mas tu continua escrevendo.
Falou desse jeito, mais afirmação do que pergunta. Quase um
imperativo. Aqui e ali, uma coisa ou outra. Disse que gostava dos textos que eu
escrevia, que eu não devia deixar isso de lado.
- Os desvios são
necessários para revelar a vida nas coisas. Até hoje lembro do momento que
anotei essa frase. Não sei se é minha ou se veio de algum texto, mas nunca
esqueci.
- Não faz diferença – agora é tua. Tu te apropriou, deu um
sentido pra ela; é tua.
***
Era um sábado frio no fim do verão. Pegamos um segundo café
e ficamos ali até a hora em que ele teve que subir de novo, para a segunda aula
da tarde. Falamos sobre as aulas, os exercícios de escrita que ele costumava passar,
as idas e vindas dos nossos tempos, curvas de leituras, as prisões e
potencialidades da língua.
Ignorar os próprios fantasmas é só mais um jeito de mentir.
- Quando a gente escreve, e cria uma história, personagens,
cenários, isso vem do nada. Claro que tem todas as referências, todas as
leituras anteriores, todas as memórias. Mas essencialmente vem do nada. Como
algo pode vir do nada?
***
Costumava tocar uma música contínua, que carregava o tempo
em direção ao futuro. Um dia, a música silenciou, e foi quando o
futuro retrocedeu. Se o futuro pode retroceder, poderemos nós ir adiante? Antes
que o tempo passe e nos leve até lá, antes que o futuro seja.
No fim, só podemos voltar. E voltamos sempre.
- É preciso acreditar nas próprias histórias. Se nem a gente
acredita, por que alguém mais iria?
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