6 de fevereiro de 2019

retalhos


O melhor dos dias de chuva é isso, não é preciso esperar nada deles.

Foi um dia em que eu nem acendi a luz. Mal dava para chamar de claridade, a luz cinza que entrava pela janela da sala. Era só a chuva, mesmo. Caindo pesada, com força. As copas das árvores balançando com o vento. E o barulho dos pingos. Com o que se pode comparar o som de pingos de chuva? Uma suavidade qualquer. Um ritmo de perto que leva para longe. Uma moldura ou pano de fundo para os pensamentos que deixarmos chegar.

E tudo veio assim, em flashes. Fragmentos. Fios desconexos. Pontas soltas de tantas histórias.

***

Um sorriso de cabeça baixa, como se sentisse vergonha ou ficasse sem graça de responder sobre o final de semana em São Paulo. Ou o sorriso aberto e entregue de quem diz “fui aprovado”. A companhia mais leve e improvável que poderia ter surgido naquele fim de semana. “Vamos jogar?”

Uma mão no ombro quando vai chegando. E pergunta sobre o livro que estou lendo e o trecho que acabei de sublinhar. “Gosto muito do trabalho desse ilustrador”. Senta ao meu lado no sofá e fala sobre a semana que vai começar. O respiro de uma tarde como aquela. Quem faz isso, hoje em dia? Quem para e dedica cinco minutos do seu tempo sincera e inteiramente a outra pessoa?

Escorado no balcão, a luz apagada. O ombro que se ofereceu quando precisei chorar e queria esconder as lágrimas. Aquele abraço apertado que foi um colo e me envolveu como se dissesse: chora. Nunca precisamos de muitas palavras. Tanto que eventualmente não sobrou nenhuma. “O que a gente tem já é pra sempre.”

Vestígios de um menino que não conheci na expressão mais doce que me lembro de conhecer. As mãos folheando meu livro. Inclina levemente o queixo para a esquerda e me dá um sorriso divertido: “Quase, mas ainda não é bem isso”. Rio, porque sei que não é nada disso e ainda estamos longe de quase. “A negação não nos leva a lugar nenhum.”

***

Gotas escorrendo pelos vidros da janela. A chuva segue, indiferente, e de repente entendo que sinto inveja dessa indiferença. A chuva é – existe e acontece independente de qualquer história. A água atinge o chão, e pouco importam as vidas que correm sobre ele. Destinos paralelos que neste exato minuto pensam em conjunto:

chove.

As lembranças são um composto de tempos. O que já foi e o que é temperado pelo devir, pelo que eu gostaria que fosse ou tivesse sido. Um vislumbre de eternidade, todos os tempos unidos em um mesmo fragmento. Tão rápidas e efêmeras quanto os pingos de chuva – vêm numa enxurrada breve e de repente não existem.

São pequenas distâncias. Sabores do que não existe. De tudo, guardo palavras.

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