28 de março de 2019

ônibus


Eu queria acreditar que sim, as palavras mudariam tudo.

Parou aí, daquela vez. E lá se foram dois meses. E aconteceu exatamente assim – as palavras mudaram tudo. Foram ditas, ganharam vida, ganharam o mundo. Mudaram tudo.

Só esqueci que não necessariamente elas mudariam tudo da maneira como eu gostaria. E aconteceu exatamente assim.

***

Tem aquelas coisas todas de viajar de ônibus – não ter muita escolha quanto ao horário da viagem ou quem vai sentar do lado. De repente a rodoviária nem vende mais passagens e é preciso ir até a cidade vizinha. Com outro ônibus. Nenhum poder de escolha, mas sempre a mesma expectativa: três horas para ler, dormir ou pensar. Três horas inteiras.

Não sei se era uma montanha. Não domino os critérios de classificação geográfica. Mas fiquei pensando que a menina que eu fui não caberia em si de felicidade com tanto mato no pátio dos fundos. Porque era o que eu mais gostava. Brincar no mato. Nem me ofendo quando as pessoas dizem, “bicho do mato”. Sempre fui.

E do outro lado a lagoa. Imagina aquela lagoa nos fundos de casa. Algumas das casinhas tinham um pequeno píer. Os barcos atracados. Crianças ali nadando. Imagina. “Mãe, terminei o tema, vou pra lagoa”. Que sonho.

É sempre assim que começa. Quando começo a sonhar acordada.

Se um dia eu tomar uma decisão, dessas pra mudar tudo, vai ser a de morar perto do mar. Sentar na varanda de frente pra água. Dar uns passos e estar ali.

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As palavras.

Me disse tudo aquilo. Alguém realmente me disse aquelas palavras.

Tenho a tendência de achar que não é nada demais. Não é tão bom assim. Ninguém prestaria atenção. E quando alguém elogia deve ser por educação.

Será que posso ter esse tipo de impacto nas pessoas?

Bom, eu tive. E as palavras ganharam vida. Escrever – conceder o sopro da vida. Tudo mudou.

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E Marte? Qual vai ser a primeira geração a ver alguém em Marte? Imagina o Bowie. Mas, pensando bem, que bom ele não estar aqui pra ver isso. A fantasia da vida em Marte se baseava justamente no fato de que não seria a nossa. Porque essa existência e essa raça merecem o fracasso ao qual estão fadadas. E num futuro já vislumbrável estaremos destruindo outros planetas além do nosso. Que sucesso.

Acabar com um planeta. Pensa na magnitude disso. Inviabilizar a vida não em uma cidade, no entorno de um rio, em uma região específica de conflitos, mas em um planeta inteiro. A espécie que vai causar a própria extinção. Quem mais seria capaz disso?

E enquanto não chegamos lá ficamos aqui, literalmente se matando. Por dinheiro. Porque uns acreditam em Deus e outros não. Por quem transa com quem. Por crenças e visões. Esquerda, direita. É de uma mediocridade, de uma estupidez.

Tem o que valha a pena, mas no fim das contas é isso: a gente merece acabar. E bom seria se isso acontecesse antes de estragarmos todo o resto.

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Tudo mudou porque me disse o que disse e sumiu. Não que antes fosse uma presença constante ou alguém que de fato fizesse parte da minha vida. Não era. Mas na minha cabeça o efeito seria justamente o oposto – nos aproximaríamos. Que outro traço em comum poderia unir mais duas pessoas?

É específico demais. É raro demais.

E ainda assim foi o que aconteceu: o pouco contato de repente era nenhum contato, as respostas mais ou menos evasivas se tornaram respostas de uma palavra só, sem mais como foi o fim de semana ou como estão as coisas.

Depois da enxurrada que fez meu coração disparar – nada.

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Esses dias passaram e deixaram uma atmosfera estranha. Uma energia diferente no ar. Quando foi que eu comecei a prestar atenção nessas coisas? A de fato ser capaz de sentir uma “energia diferente no ar”? Essa sensação que às vezes surge, sem motivo, sem explicação. Out of the blue, mesmo. Adoro essa expressão. Teria a ver com o céu?

De repente no meio da leitura estou lendo frases soltas. Sem unir o conjunto em uma narrativa com sentido. Porque me lembrei do vazio que ficou lá, à minha espera.

Voltar é sempre estranho. Nenhuma outra palavra.

18 de março de 2019

não nesses dias


Como, à revelia do que sabemos, prevalece essa sensação de que a vida só existe no lugar onde estamos. O sol nasce e se põe para nós. É dia ou noite. Inverno, verão. Chove ou faz sol. Mas sempre onde estamos. O resto do mundo – a cidade vizinha  existe numa espécie de imaginário paralelo. É, mas não é. Não nos toca. Não nos pertence o que não nos alcança.

Não cabe a nós, o mundo. É demais.

As folhas dessa árvore têm uma cor e uma textura impossíveis. É um tom de verde como tantos outros que reluzem ao sol e no entanto de todas as árvores que me cercam é dela que não consigo tirar os olhos. É a árvore da minha imaginação quando penso em desenhar uma árvore. Que bom não fazer tanto tempo desde a última vez em que desenhei uma árvore.

A gente cresce e fica assim: imbecis. Todos nós. Não merecemos o mundo, como espécie. 

Tem um canário amarelo que aparece de vez em quando. Um canário amarelo na árvore da minha imaginação. Como funcionam as pessoas que têm coragem de manter pássaros em gaiolas?

Ele está ali, cantando. Vento. Tanto que a rede chega a balançar de leve. Estou prestes a virar a página e me dou conta de que não lembro uma linha sequer. É literal, mas bem poderia ser uma metáfora. Sempre acontece. No sentido literal e no metafórico. Pensamentos que começam a jorrar de todos os lados, pensamentos que eu nem sabia que era capaz de pensar. E não param. Mas também nunca se completam. Um pedaço de uma ideia. Duas ou três frases soltas. A lembrança do ralo do tanque que preciso arrumar. A entrevista que acabei de confirmar. A pessoa com quem gostaria de falar sobre tudo isso. A pessoa que eu gostaria de ouvir. Todos os dias.

Os vizinhos dos fundos e a batalha pelo som mais alto. As mesmas músicas em ordem diferente. O dia inteiro. Não sei se leem ou não. Se dormem. E só consigo pensar nisso como sintoma da incapacidade de toda uma geração de ficar em silêncio. De ouvir os próprios pensamentos. É medo?

Porque dá uma ansiedade. De repente pensar em tudo. Inclusive tudo em que não se gostaria de pensar. 

O canário voou. Outros dois passarinhos se molham na pequena poça que a mangueira formou na grama. Devo aceitar? Tudo parece tão distante. Irreal. É o que acontece. Com as coisas e com as pessoas. Quando estamos distantes. Será que também pensa no que estou fazendo agora? Enquanto eu penso. Uma presença leve que ilumina tudo. Soou como uma despedida. Vamos nos ver de novo?

O que vou dizer na entrevista? Não existe botão de voltar. Arquivar. Deletar. É a vida, acontecendo de novo. Mas não nesses dias. Não era para acontecer nada nesses dias.

Um mar tão inquieto que só o próprio mar poderia acalmar.

10 de março de 2019

os desvios são necessários para revelar a vida nas coisas


Quero um pouco de tudo aquilo que nos tira da realidade.

Os olhos fechados contra o sol. A janela de um avião. A vida por trás das janelas acesas à noite ou dos rostos na rodoviária. As formas em movimento no fundo da piscina. Os sons do universo paralelo no fundo do mar. Quase todos os livros. O céu. Um café no Campus Centro.

***

É pretensão minha imaginar o que outra pessoa diria? Bom, todo escritor precisa dessa pretensão. Era mais ou menos o que eu pensava quando ele entrou na sala. E na verdade não importa se na realidade a pessoa nunca diria aquilo – porque não é realidade. É ficção.

Usava roupas parecidas com as que eu me lembrava de ver nas eletivas da faculdade. Calça jeans escura dobrada nos tornozelos, calçados que eram um híbrido entre tênis e botinas, camisa xadrez com as mangas também dobradas, pulseiras de couro no pulso esquerdo, óculos. Os grisalhos, antes restritos à região próxima das orelhas, tinham se espalhado.

Faltavam dez minutos para o horário marcado, a sala ainda não estava cheia. Ele largou a pasta sobre a mesa, separou umas folhas e alguns livros e olhou ao redor. Tentei ler os títulos pela lombada, mas a miopia não deixou. Reconheci Deleuze e Borges. Tentava decifrar um terceiro quando percebi que ele estava olhando pra mim. Olhei de volta. Sorri. Tudo bom? Veio na minha direção. Me reconheceu. Levantei para cumprimentar. Falamos rapidamente e ele puxou um dos livros. Já leu? Faulkner. Não, li um outro dele, bem curtinho, esse ainda não. Leitura obrigatória. Fiquei ali de pé, folheando o livro. Teria começado a ler ali mesmo.

- Gostou? Leva pra ti. Tenho outra edição igual em casa.

***

Quando a aula acabou, fui agradecer e me despedir, momentos assim me faziam sentir falta da faculdade, encontros para estimular o pensamento fora do eixo que só vivíamos nas cadeiras dele. Perguntou se eu tinha algum compromisso – ele tinha outra aula para dar em duas horas, podíamos tomar um café nesse tempo se eu não estivesse com pressa. Eu não estava.

Perguntei da filha pequena. Ele comentou que leu meu TCC e perguntou se eu não pensava em Mestrado. Disse que não. Muito tempo, muita entrega. Só queria umas aulas assim, de vez em quando, não deixar a cabeça parar.

- Mas tu continua escrevendo.

Falou desse jeito, mais afirmação do que pergunta. Quase um imperativo. Aqui e ali, uma coisa ou outra. Disse que gostava dos textos que eu escrevia, que eu não devia deixar isso de lado.

- Os desvios são necessários para revelar a vida nas coisas. Até hoje lembro do momento que anotei essa frase. Não sei se é minha ou se veio de algum texto, mas nunca esqueci.

- Não faz diferença – agora é tua. Tu te apropriou, deu um sentido pra ela; é tua.

***

Era um sábado frio no fim do verão. Pegamos um segundo café e ficamos ali até a hora em que ele teve que subir de novo, para a segunda aula da tarde. Falamos sobre as aulas, os exercícios de escrita que ele costumava passar, as idas e vindas dos nossos tempos, curvas de leituras, as prisões e potencialidades da língua.

Ignorar os próprios fantasmas é só mais um jeito de mentir.

- Quando a gente escreve, e cria uma história, personagens, cenários, isso vem do nada. Claro que tem todas as referências, todas as leituras anteriores, todas as memórias. Mas essencialmente vem do nada. Como algo pode vir do nada?

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Costumava tocar uma música contínua, que carregava o tempo em direção ao futuro. Um dia, a música silenciou, e foi quando o futuro retrocedeu. Se o futuro pode retroceder, poderemos nós ir adiante? Antes que o tempo passe e nos leve até lá, antes que o futuro seja.

No fim, só podemos voltar. E voltamos sempre.

- É preciso acreditar nas próprias histórias. Se nem a gente acredita, por que alguém mais iria?