25 de janeiro de 2019

um almoço


O barulho do ventilador embutido no elevador.

Mal refrescava, aquele ar. À esquerda, a tela do tamanho de uma folha A4 mostrava a tabela do campeonato brasileiro. Estávamos só os dois ali dentro, e o elevador surpreendentemente não parou em nenhum andar, mas mesmo assim a descida pareceu levar uma eternidade.

O tempo costuma demorar a passar quando procuramos palavras.

Na rua, ele colocou os óculos escuros que trazia pendurados na gola da camisa.

- E aí, aonde vamos? Não vou poder demorar muito. Marcaram agora de manhã uma reunião à uma e meia...

Era sempre assim. Ou vinha sendo sempre assim, há mais tempo do que eu conseguia lembrar. Fazia parecer um favor. Pronto, estou aqui, cedendo uma hora do meu precioso tempo e da minha valiosa presença pra ti. Não era isso que tu queria?

***

Sentamos em uma das mesas ao lado da janela. Pedimos nossas bebidas. O garçom riscou uma comanda e a deixou sobre a mesa.

- E aí, como vão as coisas?
- Tudo certo, eu acho. E contigo? Parece bem ocupado.
- É, é muita coisa. Mas tá tudo bem. Tirando não ter mais tempo pras coisas.

Nos servimos e começamos a comer, em silêncio.

...

- Acho que finalmente aprendi a me manter assim, sabe? Sem deixar as coisas me afetarem. E aí fica tudo bem. Claro, não chego a me empolgar com quase nada, mas pelo menos não sofro que nem antes.
- Que bom, se isso funciona pra ti.

...

- E como tão as coisas com a Bruna?
- Ah! Não te falei? Decidimos morar juntos.
- Não falou. Que bom! Ficou sério mesmo, então?
- Parece que sim, né?
- Pois é! Mas, sério, que bom! Tomara que dê certo.

...

- E tu? Alguma novidade nesse sentido?
- Nada que tu já não saiba.
- Não rolou lá com o carinha?
- Ah, sei lá. A gente conversa, eventualmente. Mas se ele quisesse alguma coisa já tinha acontecido. Eu já dei todas as aberturas possíveis. Enchi o saco de ficar tentando. Se não volta, não volta. Né?

...

***

Houve o tempo em que não sabíamos o que dizer porque tínhamos o que dizer. O mundo dentro de nós. E agora o que nos restava era isso – almoços de superfície, temperados por silêncios desconfortáveis.

Quando nos tornamos essas pessoas? Que nunca têm tempo, mas nunca têm culpa?

Eu queria dizer isso para ele. Queria dizer que as escolhas são nossas. Que as prioridades e o tempo são escolhas nossas.

***

Ele comia rápido. Tinha recém passado da metade do meu prato quando vi que ele colocou na boca a última garfada. E eu não poderia adivinhar se era sempre assim ou só porque estava comigo. Pensei em acelerar, mas também pensei: foda-se, esse não é um problema meu.

Me lembrei do Piglia: “Eu tinha esquecido as palavras para falar com ela”. Era isso. Eu não tinha mais as palavras para falar com ele.

Queria a amizade que já não existia. E lutava por uma proximidade impossível de ser recuperada. Não era isso que tu queria?

***

De repente, mais coisas nos separavam do que nos uniam. De repente, o que antes costumava nos unir agora nos separava.

- Pode ir subindo se quiser. Vou ficar aqui pra fumar um cigarro. Tu parou mesmo, né?
- Parei.

12 de janeiro de 2019

em suspenso



Sempre me deixa assim: em suspenso.

Era uma das preocupações que eu tinha – não precisava gostar da pessoa, mas tinha que pelo menos me sentir à vontade. Claro, eu poderia procurar outro lugar, mas só de pensar na função. Torci para ser alguém “normal”.

No dia que cheguei, ainda não tinha me apresentado, vi de longe. Ok, é uma pessoa legal. Não acontece sempre, mas a gente simplesmente sabe, às vezes. Vemos a pessoa e sabemos que é uma boa pessoa, que vamos nos entender.

Só não sei quando começou a ser mais do que isso. Mais do que alguém que estava ali. Mais do que alguém que não me fez querer ir embora.

***

Minha vontade era de falar. Mandar uma mensagem agora e contar o que aconteceu. A gente cria uma versão da pessoa e de repente é o único ser no planeta, ou pelo menos o primeiro, com quem queremos dividir uma notícia boa.

Nunca tive nenhum motivo para isso, eu bem sei. Nenhuma indicação, nenhuma indireta, nenhum movimento, nenhuma fala que desse a entender nada. Era só essa sensação.  

De que todas as escolhas que fizemos nos trouxeram até aqui para que nos encontrássemos. De que esse encontro foi mais do que uma coincidência. De que o que temos em comum deveria ser motivo para sermos mais do que duas pessoas que se encontraram por acaso.

***

Me deixo levar. Me deixo permanecer em suspenso. À espera de algo. Enquanto os dias passam. Sem qualquer promessa.

Às vezes é só isso: o bruto sono da realidade. Lost in translation. Pessoas se encontram e desencontram todos os segundos sem que isso signifique nada. O que significa encontrar uma pessoa? Nascemos com olhos que querem ver mais.

3 de janeiro de 2019

abaixo da superfície


É um desses lugares que definham com o tempo em vez de florescer. Que decaem em vez de revigorar.

Sempre passamos os verões aqui. E tinha sempre uma galera: os meninos mais velhos do colégio, os nossos próprios colegas, as amigas que ocupavam todos os colchões lá de casa. Além do pessoal que ficava na praia vizinha. E tudo era tão perto e a passagem do ônibus era tão barata.

Hoje não sobrou quase nada. E ninguém mais vai pra lá.

Ou nós simplesmente envelhecemos?

***

Gosto da sensação de praia vazia quando caminho. Conheço as ruas quase mais do que a mim mesma, tantos os passos que já dei por todas elas. Poderia andar de olhos vendados e bastaria contar as quadras para me localizar.

Vou para fugir. 

Das pessoas, do calor, das vozes, de uma rotina ao mesmo tempo veloz e mecânica, quando abrimos os olhos e respiramos apenas pelos momentos que nos lembram que estamos vivos.

Sobretudo dos sentimentos, que aqui sempre gritam mais alto.

***

Estamos sentados na areia, olhando para o mar. O barulho e o movimento hipnotizante das ondas. Vão e voltam. Incessantes. Completas no ir e vir sem fim. Não importa quanto tempo permaneçamos parados diante delas. E ficamos quase o dia todo.

- Esse momento alguma vez passou pela tua cabeça?
- Como assim?
- Que a gente viveria algo assim.
- Não.

Silêncio.

- Passou pela tua?
- Tantas vezes que tu não é capaz de imaginar.

Ele beija meu ombro.

- Acho que sou, sim. Mas nenhuma versão poderia ser melhor do que essa. Essa é real.

Devolvo o beijo.

- Mas tu não fica um pouco puto com isso, de algum jeito? Que a realidade seja melhor do que a imaginação?
- Por que eu ficaria?
- Porque é o que gente faz, ora. Inventar coisas. Criar histórias. Se a vida ganha disso, o que nos sobra?
- Reinventar a própria vida.

Nova pausa.

- Esse momento é um pouco disso, se for pensar. Tu imaginou. Agora a gente tá aqui vivendo. Depois pode virar ficção.
- E agora? De quem foi essa ideia? Minha ou tua?

***

Não há quase ninguém na praia. São os últimos dias de verão, e a maioria das casas já está fechada, com os alarmes acionados e a poeira que reinicia o processo de se acumular sobre as superfícies.

Superfície.
O fundo é solidão, mas a superfície é o inferno.

Nunca me desfaço dessa frase. Os dias seguem seu curso de dias e de repente ela soa. Foi escrita sobre uma tempestade no mar. E é a vida, também.

***

Pela janela do ônibus, um vislumbre do que fica para trás. Uma bicicleta escorada na parede da rodoviária. Folhas secas que rodopiam pela calçada com rajadas repentinas. Nenhuma alma salvo a do atendente da rodoviária, também com os dias contados.

As ruas vazias de um lugar parado no tempo. O verão acabou.

Estávamos abaixo da superfície. Os dias eram nossos, o tempo era nosso, e o que aconteceu lá fora não penetrou o universo que criamos.