14 de dezembro de 2011

os desejos

Quando a subconsciência parece mais consciente que a própria consciência, e, enquanto ela dirige, um portão na rua que se abre automaticamente com a proximidade de pessoas ou carros.
Saiu atendendo uma ligação no celular. Não, não vou pra casa agora. Parei aqui, em algum lugar. A placa na esquina com o nome da rua, familiar. Já vista. Onde? Em uma foto? Que foto? E então ela deu conta da casa sem cercas, logo ali.
Um grupo de pessoas observava do jardim. Olhavam como se perguntassem quem é, o que ela está fazendo, o que quer aqui. Nenhum um rosto conhecido além dos cabelos pretos e o sorriso de ponta a ponta, o carisma e a simpatia que o mundo nunca há de ver iguais em outro homem.
Depois eu ligo. Não sei, pode escolher. Não posso falar agora, depois eu ligo. Aproximou-se da casa para cumprimentá-lo, e as pessoas que antes olhavam desconfiadas rodearam-na convidativas. Vem, vamos entrar. Muitos sorrisos. Era de família, então?
Ele a acompanhava, esperando para que pudessem conversar, por quê?, e uma mulher chegou pelo outro lado. A mãe? Vai deixar o carro na rua? Pode deixar que ponho ele pra dentro. Não, não precisa, imagina. Não, por favor. E lá se foi a mulher, com as chaves, trazer o carro para dentro do terreno.
De repente não se podia mais vê-lo, vermelho que era. Foram atrás, e nos fundos da casa um desnível no terreno. O carro preso, caído ali. Não se preocupe, querida, nós vamos tirar ele daí depois.
Ela viu o corpo tomado pelo desespero e deu as costas. E agora? Meu deus. Meu deus. E agora? Sentiu o puxão forte no braço, e o olhar terno e sereno. Tão cúmplices, ali, sedentos de distância e silêncio.
Eu tenho cerceado a mim mesma por anos, constantemente me policiando, a fim de não pensar certas coisas, não sonhar com outras, não fazer outras ainda. É uma política sem sentido. Eu quero fazer.
O alcance dos corpos perante os desejos. As mãos, perfeitas, deslizando sobre a pele. Arrepio. Respirar no ouvido, olhar nos olhos. Fechar os olhos. Minha pele. Teu toque, teu cheiro.
O prazer que a vida pede e a gente atende.

8 de novembro de 2011

um rei e o zé


Um dia me foi contada uma pequena fábula sobre um rei e um zé. Dizia ela que quem deixa ir tem pra sempre. Reproduzo-a aqui, então, com o zelo de manter seu significado e a esperança de que permaneça ainda viva quando o tempo de seus contadores chegar ao fim.

Andavam a esmo dois homens. Distantes um do outro, o cenário que percorriam era semelhante, quiçá o mesmo. Mas como no ensinamento confucionista talvez fosse aquele reino um outro sendo também o mesmo, segundos antes ou depois. No dia ensolarado de uma estação qualquer, toda a grama reluzia e o azul no céu lhe fazia contraste. Eram os dois homens também as únicas pessoas naquelas paragens. Via-se ao longe o castelo do Rei; a moradia do Zé não era possível avistar.

Seguiam à sorte entre os nadas que podiam enxergar, travestidos de tudo. Vetores, o Rei e o Zé eram caminhos de mesma direção e sentidos opostos. Enquanto um ia, outro voltava. Na ida e na vinda, um sistema de rumos perdidos: para o observador estático sob a árvore, no exato momento em que se cruzassem, não passaria a voltar o que antes ia e a ir o que antes voltava? Uns chamam de física, outros de ordem natural, sem saber que falam da mesma coisa. Mas não-vetores o Rei e o Zé viram seus caminhos chegarem um ao outro e tomarem um mesmo sentido, novo, agora perpendicular aos anteriores: as mesmas coisas vistas por outro ângulo, as mesmas coisas vistas por outro olhar.

"Não vou te falar das coisas que sei, dos livros que li, dos conhecimentos que carrego", as palavras saíram dos lábios nobres. E o homem sóbrio postado ao seu lado encarou-o, esperando por algo entre o absurdo e a sabedoria. Não teriam em sua composição, afinal, um pouco um do outro, absurdo e sabedoria, um Rei e o Zé? De reinados impossíveis descendo às cavernas dos velhos sábios, escondidos do arrabalde. Do chão batido da penúria aos floreios lá do alto, onde o saber se esconde sob uma coroa.

O Rei trazia consigo as marcas de um soberano. Da roupagem às feições, as cicatrizes nem tão ásperas e o ar elegante de quem constrói a própria trajetória com um propósito, ainda que recôndito. As barbas que entregavam a experiência na bandeja e marcavam seus anos. E, sujeito simples, o Zé pensava que talvez não fosse capaz de compreender as posturas do Rei, mas ali estava, em nome da vontade obscura de uma nova frente. As barbas que marcavam seus anos e deixavam à vista as ações da vida.

"Sou rei porque penso diferente", mais uma vez as palavras nobres, como se estivesse o homem a buscar justificativas para a própria condição. E à medida que iam andando o Zé do seu lado mais e mais procurava descerrar os horizontes, em prol da nova filosofia que se lhe apresentava. Arriscou a pergunta e viu o Rei se calar. O tartamudeio e a mudeza, que não se usa mais dizer. Então ele não sabia que os reis falam e calam quando têm vontade?

"A pressa não nos deixa ver o que é evidente. Eu achei do meu lado o que me fez assim", chegaram, finalmente, as palavras do soberano.

E do pequeno espaço que ocupava no mundo o Zé pode visualizar o ensinamento, feito presente por meio de apenas duas sentenças. A nova perspectiva que buscava desenhava-se nos aforismos reais – e o contraste de conhecimentos aos poucos tomava forma, um quê de soberania, um quê de popular.

Frente à decisão do Zé, desejoso de encontrar a filosofia nova para a vida que era a mesma, o Rei falou-lhe de saberes adquiridos não com a experiência somente, mas com a experiência da realeza. Pequenos apontamentos que iam e vinham, contando o lado podre da vida e ao mesmo tempo querendo ensinar a viver. Será? E então vinha o silêncio dizer que nem tudo pode ser dito. Que, em verdade, talvez pouca coisa o possa.

“Quem deixa ir tem pra sempre”, o Rei disse, num repente.

O Zé saboreou as palavras com os ouvidos, sentiu o som que entrava ativando mecanismos outrora em desuso. Quem deixa ir tem pra sempre. As palavras lhe soaram certeiras embora não conseguissem tomar o corpo de uma certeza. O Zé pôs-se a pensar nas coisas que ouvira e viu seus desejos e crenças, em lados opostos, brigarem entre si. O Zé vislumbrou o castelo do Rei ao longe, e o próprio Rei que caminhava a seu par, e quase pôde tocar suas diferenças. O Zé ouviu aberto e atento as palavras daquele soberano e então pôde tirar a conclusão de própria autoria.

Os pensamentos são regidos por engrenagens estranhas, é sabido. Umas conexões com um quê de meu que se misturam com todo o resto espalhado pelo mundo e ora estão quietas mas ora inventam de sair para respirar novos ares.

“Não leve a mal. Eu queria poder ter outra filosofia, mas não nasci pra conversar com rei”, a sentença fugiu do universo de um e chegou ao do outro.

O Rei calado, como sorvesse uma taça de vinho em solidão. O Zé – também calado. Há certos momentos em que o silêncio vem para ser a matéria-prima da vida. E ali fica para explicar aos que forem capazes de alcançá-lo que as realidades mais distintas podem, então, encontrar-se e compartilhar filosofias. Em suas entrelinhas taciturnas ele fala e deixa ouvir. O que escapa, porém, aos domínios do silêncio são os efeitos desses encontros, imprevisíveis, bem-vindos ou não, benéficos ou não.

O Zé percebeu-o como um ponto derradeiro. A nova frente que encontrara nas palavras do Rei, descobriu-a imperfeita. E descobriu a si próprio também imperfeito. Duas realidades confrontadas seguiram as mesmas. Duas realidades (o)postas lado a lado: um Rei e o Zé.
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Baseado na canção de Alexandre Kumpinski e Ian Ramil.
Roubei ainda parte de uma frase veiculada por aqui, quando eu não sei precisar.

5 de outubro de 2011

as árvores

As flores no cabelo poderiam ser as mesmas que a rodeavam enquanto fixava os olhos redondos num ponto qualquer e se punha a pensar no futuro. É o que de mais incerto faz parte da classe humana e assim mesmo pensamos nele com tal freqüência. E a menina ali sentada, a pensar nas coisas que não podia determinar. E também naquelas que ela não ousava - ou não conseguia, quem o dirá - sequer formular, os segredos tão íntimos que não contamos para nós mesmos. Que medo de ficar velha e sozinha. Logo hoje, que ninguém mais consegue ficar sozinho e ao mesmo tempo todos estão. Esses clichês que cercam a efemeridade.

Eu tive esse sonho horrível contigo, em que tu cravava uma faca na minha barriga e depois me beijava com o mesmo amor de antes. E eu não sentia dor ou via sangue, só a incoerência entre a raiva e a vontade de te ver morto e a satisfação por estar ali, teu corpo sobre o meu. E pouco depois tu me olhava e usava a mesma faca em ti mesmo, tirando a própria vida. "Tá tudo bem?", eu tive vontade de ligar e perguntar quando acordei assustada.

Ninguém pode carregar ou se livrar sozinho de uma culpa. As culpas estão sempre a passear por aí; não são de ninguém, mas são de todos. Faz lembrar a cumplicidade. Até nas piores coisas, aquelas que nem deveriam existir. Já pensou se nós pudéssemos renunciar? 'Não quero, não, obrigado', e então acabou-se. Como as imagens dos sonhos que são arrancadas da memória e tudo o que se sabe é que parou ali. Sentar e ver, parada, as pessoas movendo-se constantemente a poucos passos era um contraste com a correria da própria vida. O prazer de parar, fazendo confortável qualquer banco sem encosto. Quem sabe passar a vida correndo amenizaria velhice e solidão. Isso porque é bonito ser um jovem solitário. E é simplesmente lindo ser um velho acompanhado, até que a morte os separe. Mas não há qualquer poesia em um velho solitário.

Eu me lembro às vezes de quando tu tava por aqui e das bobagens que a gente conseguia dizer. E no entanto meu lirismo não é suficiente. Dos planos que eu tinha pra gente eu não mantive nenhum e nenhum deixou de ser só um plano. Umas idéias vagas e felizes que passaram pela minha cabeça, tantas e tantas vezes. Eu quis dar um presente de aniversário. Mesmo que um dia eu queira. A vida. Um por quê. Os planos de vôo. O chão. E passou em uns poucos segundos todo o tempo preciso para passar. Lembrar hoje em dia não é alarde, alarde é não lembrar.

Pouca coisa na vida é tão bom quanto falar besteira. E acho que pouca gente sabe disso.

"Tu tem aula no Vale agora?"
"Não, não. Só vim dar uma volta. Mas senti vontade de ter."
"Por quê?"
"As árvores."
Minha metáfora.
E quem sabe o que viria depois.

2 de setembro de 2011

o velhinho

Eu gosto muito do velhinho da banca da esquina. Não sei o nome dele, mas já comprei a Zero Hora ali algumas vezes, quando me foi estritamente necessário ter uma Zero Hora em mãos. Eu queria conhecê-lo. Queria ser uma das pessoas que ele cumprimenta quando passa, que diz "bom dia, seu fulano". Daquelas que param pra conversar, um papinho rápido, uns cinco minutos talvez. E comentar as amenidades da vida e do dia-a-dia.

Vai chover, sempre chove, esse clima de Porto Alegre. Como tá frio, um calor desgraçado. E os políticos desse país que não têm arrumação, só querem dinheiro e mais dinheiro, e a gente. A gente aqui, né, todo dia. E o grêmio? Bah, o Inter? Esses times não têm jeito, né. São uns mortos. É.

E depois a vida seguiria. O meu trajeto até o prédio e o horário dele de fechar. Talvez eu passase antes ainda no mercado pra comprar uma coca. Quem sabe um vinho. Ou um chocolate. E pão e carne. Dependendo do dia, eu poderia até pagar de saudável e comprar maçãs e tomates. Mas normalmente eu passaria reto: direto pra casa, direto pro banho, direto pra cama.

Enquanto ele, quem sabe? Iria pra casa, onde a mulher estaria esperando com a janta. Ou talvez fosse jantar na casa de um dos filhos e ver o neto, aquele guri danado, sete anos, recém começou o colégio.

Não sei. Não sei o nome do velhinho.

Mas eu gosto mesmo é de vê-lo arrumando os jornais quando passo por ali. De manhã cedinho, antes do trabalho, e no fim do dia, na volta pra casa. Outra vez, quando passei de manhã, ele ria. Um outro senhor, rindo também, trazia na coleira um golden retrivier alaranjado, lindo, que saltava alegre na direção de duas meninas. Pulando, o cachorro ficava quase maior do que eles. E ambos davam gargalhadas. Bom humor de manhã deve ser a minha única qualidade, mas possivelmente seja uma das muitas dele.

Ontem eu passei e a banca tava fechada. Não sei o nome do velhinho.

27 de agosto de 2011

a fantasia


Ele é tipo o homem dos sonhos.
Tipo a ambição afetiva que nunca se vai alcançar.
Tipo o sonho de que se acorda com o gosto ruim da verdade.
A personificação do que se imagina ideal.
Eu o vi da calçada. E ele olhou pra mim. E por segundos eu tive certeza. E eu dobrei na esquina.

27 de julho de 2011

a palavra não dita na partida

Talvez buscar inspiração nos sonhos fosse sabotagem, enganação. De onde vieram aquelas imagens todas, de rapazes passando por perto, de envolvimento, de conversas sem nexo? Não é propriamente criação, mas ainda sai de dentro. E não importa, afinal, de onde vêm as histórias, mas como elas são contadas. Ou se são contadas, dados a vergonha e o receio. De quê?, elas perguntam. Mas quem sabe de que se tem medo.

Saíra mais uma vez sem se despedir. Cada aceno no portão trazia as mesmas incertezas, históricas, de quando vamos nos ver de novo e de será que voltaremos a nos ver. Não era o tchau antes do fechar da porta, esse não tinha a menor importância. Eram o adeus, o fim e o não te levo a sério que chegavam atrasados e já não confortavam ou valiam qualquer coisa. Os olhos nos olhos, para quem poucas vezes olha nos olhos, fazem-se soberanos justamente quando inexistentes. Soberanamente ausentes.

A ausência soberana regada e acompanhada pela falta de reação. Agora, então, é sério? Nós não iremos sentir mais nada, nem dor, vazio ou tristeza e solidão, até a próxima vez em que nos virmos de novo embriagados de afeto e apego? Que são raros ao mesmo tempo em que demandam apenas poucos minutos para existir. E eu respondo que sim, embora não saiba a resposta, porque é o meu desejo.

A vontade é intrínseca, incomoda todos os dias enquanto não satisfeita, e a inspiração é alheia. Externa, vem das palavras de quem é vizinho desconhecido. Mas, um traço em comum, escrevemos. As palavras não ditas seguirão não ditas. E permanece qualquer coisa não descrita.

3 de abril de 2011

costura malfeita

O menino assoava o nariz. E eu ouvi. Sabe? Aquele barulho característico de quando se assoa o nariz. Você sabe o que acontece quando se assoa o nariz. E ao ouvir alguém assoar o nariz automaticamente imagina-se coisas saindo dele em direção ao pano ou guardanapo estrategicamente posicionado e depois dobrado e reposicionado para uma segunda rodada. É, sim, é nojento. Aquelas mucosidades todas. E mesmo assim as pessoas assoam o nariz na sua frente todos os dias. E o menino estava ali, no meio da calçada, assoando o nariz escandalosamente – na minha frente. Um franco absurdo, eu sei que você diria. Eu também acho. Deveria mesmo existir leis pra esse tipo de coisa: o que se pode e o que não se pode fazer em público, visando ao não constrangimento dos demais presentes que se pudessem não estariam ali assistindo a tudo mas estavam porque não foi uma escolha deles – foi uma escolha de quem resolveu deliberadamente assoar o nariz em praça pública. De fato, um franco absurdo. Concordo com você.

Depois de tal despropósito, o menino e sua mãe seguiram viagem, como se o incidente tivesse sido apenas um incidente. Parece-me que essas mães pós-modernas não sabem mais educar os filhos; ora vejam, deixam-nos até assoar o nariz na frente de estranhos. Minha mãe não era assim, não. Ah, a saudosa Dona Cicica por certo teria muito que ensinar às mães pós-modernas. Mas esqueci-me então do menino assoante e voltei minha atenção aos demais pedestres – um guardinha vagaroso a andar de um lado a outro na calçada, um vendedor de pipoca com feições de mágico de circo, menininhos indevidamente uniformizados (essas mães pós-modernas...) a caminho da escola –, quando minha memória estalou: eu tinha um encontro marcado.

Um encontro marcado.

Certamente eu não me levantaria dali por mais nada – acredite, sei do que estou falando. Mas, diante das circunstâncias, me vi obrigado a desencostar meu traseiro daquelas tiras de madeira presas entre blocos de pedra moldados especialmente para ajustar-se a elas e ainda oferecer às vistas dos transeuntes um design minimamente agradável e atravessar a rua em direção ao novo destino. Antes de cruzar a via, puxei do bolso da camisa um dos meus três companheiros fiéis, meu pente, a fim de pôr ordem nas madeixas que por ventura houvessem se desordenado. Apoiei-me, então, na minha segunda companheira fiel, minha bengala, e pus-me a percorrer a rua. Mas não se engane, não: eu nunca precisaria de bengala, ora. Outro franco absurdo. Uso exclusivamente pelo garbo proporcionado. Meu terceiro companheiro fiel, por fim, são aqueles que me permitem ver tudo com a clareza e a distinção, imagino já percebidas: meus óculos. Um autêntico exemplar Ray-Ban Olympian anos 70. Assim, com tamanhos estilo e elegância, adentrei, pois, o recinto onde era ansiosamente aguardado.

11 de fevereiro de 2011

os sonhos

Sonhos. Esse mundo da terceira vida fantástica. Ou nem tão fantástica assim, já que toda a fantasia dos sonhos sai da realidade. Uma mistura de imagens provenientes das memórias mais antigas embrenhadas no córtex visual e essa coisa toda. Eles dizem que a gente é disléxico nos sonhos. E já ouvi dizer mais: pra saber se é um sonho ou não, basta você ver se consegue ler ou não, se tiver oportunidade; nos sonhos, supostamente, nós não conseguimos ler porque a memória de curto prazo está desligada. Saber ler não me parece memória de curto prazo, mas eles dizem. Outra dia, inclusive, sonhei que falava com um carinha no msn - tempos de tecnologias, a gente já sonha com as pessoas através de um computador - e eu conseguia ler perfeitamente tudo o que ele me dizia. Lembro de ele ter dito que... Não lembro mais. Acho que falávamos de Santa-Fe, do Bob Dylan, que eu andei ouvindo muito esses tempos. Não sei. Mas eu lembrava direitinho no dia, logo que acordei. Então, se eu conseguia ler, e se quando a gente consegue ler não é sonho, foi o quê? O que acontece comigo nas noites em que eu leio nos meus sonhos? Eu sempre acordei no mesmo lugar até hoje.

Eu tava assim, divagando e especulando sobre sonhar, quando o telefone tocou. Era a secretária do meu médico, confirmando a consulta da manhã seguinte. Entendo o lado dela, mas será que existe quem, tendo conseguido uma consulta, falte? Conseguir marcar uma consulta e faltar é como passar no vestibular e não comparecer na matrícula: são no mínimo mais seis meses de espera. Só morrendo antes. Falando em faculdade, esses dias andei sonhando com ela. Eu estava lá parada e as pessoas ficavam passando por mim, em intervalos irregulares, uma de cada vez, e falavam coisas que me pareciam não fazer sentido nenhum. Eu não dizia nada, só ficava olhando e ouvindo. E as pessoas passando, passando e falando. Sei lá se esperavam resposta, o fato é que eu não as dei. Sonho bem assim, mesmo: sem graça, sem entusiasmo. Isso deve ser meu inconsciente tentando melhorar minha convivência com as pessoas - sem sucesso.

Pois é, eles dizem também que os sonhos têm essa função. Função? Sonho lá tem função agora? É, parece que sim. Como são baseados na realidade, eles meio que ajudam a resolver problemas, nos preparando para lidar melhor com determinadas situações ou adversidades. E, mesmo quando eles não são lembrados de manhã, o propósito foi cumprido, e nós aprendemos sem nos darmos conta disso. Será? Mas mesmo assim eu me chateio quando não lembro meus sonhos. Qual a graça se a gente não puder ficar imaginando coisas a respeito? Eles dizem que é psicológico: lembra quem acha importante lembrar. Olha, eu queria ter sido voluntária nas pesquisas que concluíram tudo isso. Eu leio nos meus sonhos e, embora sempre faça um esforço tremendo pra puxar de algum lugar o que eu sonhei enquanto dormia, não é sempre que eu consigo lembrar na íntegra. Sei lá, entende.

Noite tumultuada, acordei na manhã da minha consulta com flashes de sonhos diversos. O mais marcante deles, provavelmente o último, trazia uma árvore enorme, frondosa, sozinha num descampado. O céu era de uma coloração que ora parecia cinza, ora parecia azul - acredito que eram mesmo as duas cores misturadas. Talvez houvesse branco também. É. Possivelmente. E nada acontecia, com exceção de uns vultos irreconhecíveis que passavam de vez em quando. Eles dizem que o maior talento do cérebro sonhador é o de criar metáforas surpreendentes. Seria minha árvore uma metáfora? Não sei bem de que uma árvore poderia ser metáfora, falando francamente, mas se eles dizem.

Depois de uns exames muito esquisitos - médicos por si já são coisas bem esquisitas - ouvi do meu, um senhor de cabelos grisalhos - algum médico que se preze não tem cabelos grisalhos? -, que o meu caso era raro e esquisito também. Síndrome de qualquer coisa que eu não sou capaz de pronunciar e menos ainda de escrever. Em outras palavras, ele disse, com um sorrisinho sarcástico - médicos dão sorrisinhos sarcásticos agora ou só eu que nunca tinha percebido, talvez por nunca visitar um? -, eu vou parar gradativamente de sonhar. Pois é, cara, não é não lembrar. De forma pura e simples não vai haver mais sonhos nas minhas noites e quaisquer outras horas de sono. E agora? De que outro jeito eu vou aprender coisas sem me dar conta?

Existe, eles dizem, o falso espertar, quando a gente sonha dentro do sonho, acha que acordou mas ainda está dormindo. E sonhando. Sei lá, eles dizem muitas coisas.