Como a gente fazia pra viver quando ainda existia realidade?
Acordo e o vejo dormindo ao meu lado. Fazia uma semana que
não nos falávamos. Na véspera ele me mandou uma mensagem: abre pra mim? Sabia
que eu estava em casa. Puxei o portão e ele ficou um tempo ali parado, me olhando. Nós dois em silêncio sob a luz laranja de um poste, os galhos de um
ipê, as estrelas de um céu que tanto amávamos observar em silêncio. Exatamente
como naquele instante.
Olhar nos olhos de alguém é o mesmo que olhar para o céu.
Dei um passo atrás pra ele passar. Girei a chave de volta.
Entramos. Sentou apoiando a cabeça nas mãos. Os cabelos escorrendo pelos lados.
Puxei uma das mãos dele na minha direção. Não foi culpa de ninguém. Basta
seguir vivendo.
Desenvolvemos essa linguagem, toda baseada em olhares e mãos
que se buscavam ou se evitavam. Conversas inteiras acontecem assim. E eu amo
isso em nós. Tudo o que é dito de outra maneira.
Ele abre os olhos devagar e sorri esticando os braços. Ainda
no meio do sono. Cara de travesseiro. Quer um café? A gente pode ficar lendo na
cama? A gente deve. Manhã preguiçosa. Uma vez me disseram que não pode haver
intimidade maior do que ler. Duas pessoas em silêncio, cada uma em um mundo à
parte e ao mesmo tempo juntas.
Lemos. Não precisamos de mais.
Lemos. Não precisamos de mais.
Eu me canso primeiro. Fecho o livro e largo na mesinha ao
lado da cama. Fico sentada por um momento, incapaz de decidir se quero levantar
ou deitar de novo. Ele levanta o braço. Como se abrisse um portal. Um convite a si próprio. Deito no
colo dele e durmo de novo, entre um beijo e a mão que acaricia meus cabelos.
Ele continua lendo.
Ele continua lendo.
Quero acreditar que existe uma realidade pra nós.