19 de outubro de 2015

a cidade inventada

Talvez as ruas não sejam reais.

Acordo com a sensação de já ter escrito - certa sequência de frases que soava em minha cabeça, recuperando passos dados em direção ao bairro vizinho, pensamentos que se misturavam a cada quadra vencida, sons da cidade ao meu redor. Descubro que imaginei ou sonhei. Nada aconteceu - nem a caminhada teve destino, nem as palavras foram escritas.

Avanço sob as árvores, adiando a hora de abrir o guarda-chuva. O céu está cinza e cai uma garoa fina. Passo pelas barraquinhas que vendem o que sempre vendem barraquinhas rua - bolsas, cuias, pôsteres, bijuterias, livros, antiguidades - e não paro para olhar. Na última quadra, nem barracas nem pessoas: a rua está vazia. Não passam carros, e os sons que ouço não se distinguem de qualquer coisa que pode ser só a minha imaginação. De repente, é como se pudesse ouvir com os calcanhares: o som das minhas botas sobre as pedras da calçada é nítido como se a cidade inteira houvesse sido tomada pelo silêncio absoluto. Ouço o meu andar e nada mais.

Virando à esquerda e voltando poucas quadras, estaria na casa de quem leio. Algumas quadras a mais, chegaria ao apartamento de quem ouço. E, se virasse à direita, poderia chegar aonde mora quem julgo amar. Ler, ouvir, amar. Verbos solitários e silenciosos. E em nenhum desses lugares, no entanto, eu poderia entrar. Faltariam as palavras para explicar e, em quaisquer circunstâncias, jamais seria o meu lugar.

Continuo andando e conforme avanço sou capaz de ouvir os carros que correm pela avenida em frente. O silêncio deixou de existir, mas não o abandono. Há, nas esquinas, resquícios do que um dia foi uma cidade. Em cada passo que deixo na calçada, resquícios do que fui ficam para trás. As janelas estão fechadas e os prédios parecem desabitados. Jardins de que ninguém mais cuida, portões enferrujados, pedras soltas. De quanto tempo precisamos para ter a aparência dessas fachadas?

Sigo pensando em voltar. Sempre em frente, e algo lá atrás que insiste: vire o rosto. Eu viro. E volto. E me deixo estar nesse espaço que não é nem uma coisa nem outra, nem presente nem passado. Onde vozes que há tempo não estão mais aqui ainda se fazem ouvir. Onde a espera pelo impossível parece uma escolha viável e até sensata. Do meio-fio, contemplo o asfalto. Esse caráter urbano da solidão que sempre me fascinou, do indivíduo incapaz de encontrar alguém que o escute entre milhões de pessoas, agora assume feições cruéis: é a própria realidade.

Depois do almoço, percorro o mesmo trajeto. Na direção oposta, os detalhes são outros, mas são os mesmos. O mesmo ar de abandono de uma cidade que talvez não exista mais. Minha dor já não se mostra: é seca, constante, pungente, invisível. Silenciosa e solitária, como ler, ouvir, amar. Nenhuma resposta. Nenhum sinal de que o dia que termina será diferente de qualquer outro. Caminho pela cidade vazia e imagino o vazio se prologando para além das ruas, invadindo apartamentos, tomando conta de todos os espaços, de todo o ar.

Vejo meu reflexo em uma poça: personagem de uma cidade inventada. Talvez as ruas por onde passei, que a cada passo tomaram pedaços de mim, não existam de verdade. Alguém imaginou árvores, calçadas, fachadas de prédios e cada um dos meus passos. As frases que pensei ter escrito. O abandono da cidade e o que sonho todas as noites. Pensando assim, a dor que sinto não deixará de existir, porque foi escrita. Pensando assim, continuo sendo: invenção dentro de invenção.

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