15 de março de 2014

o diário

Cara, vamo lá essa semana? Não acredito que eu vou ter que te levar na sorveteria que fica na tua rua.

Sabia sim, eu te falei num e-mail. Mas não comenta isso com ninguém, por enquanto. Vocês tão procurando apartamento onde?
*
Tudo bem, tudo bem... E boa sorte, se encontrando.
*
Tu sabe que eu não sonho (ou não lembro dos sonhos) normalmente, né. Mas eu vi um filme tri bonitinho sobre sonhos (The Science of Sleep, se se interessar), e resolvi procurar na internet algumas dicas de como sonhar e lembrar dos sonhos e até controlar o que tu sonha e o que faz dentro dos sonhos. Não consegui essa última parte ainda,
*
Minha internet é bem ruim aqui, mas vou pegar a música no final de semana. Ando tocando Bang Bang, da Nancy Sinatra, porque é facinho e o tom é bonito pra mim, eu achei. Gravei, um dia te mostro. Me manda essas músicas que tu aprende também, cara.
*
Oi! Escolheu e comprou o apartamento novo e começou a fazer a carteira de habilitação?
*
Eu tô louco pra sair com uma mochila pela Europa, e vai ser o meu auto-presente de formatura em 2018.
*
Acho mesmo que é como tu falou, e acho também que não é por nenhum motivo muito peculiar ou que tem a ver com sorte ou destino ou nada disso; acho que acontece, e é legal assim.
*
É que as palavras sozinhas não querem dizer quase nada, e, bom, não-sozinhas elas não ajudam em nada; porque aí ou já era óbvio antes ou então elas são um jeito de compensar o que deveria ter sido óbvio. Sabe? É uma escolha, não dizer e não pensar nessas coisas, and I'll stick to it.
*
eu procurei uns materiais de pintura pela casa, e acabei achando e lendo um bando de cartinhas, de várias épocas. Como eu devia ser um monstro, ainda pior, antigamente. Dá vontade de sair mandando cartas, agora, pedindo desculpas por cada coisinha, pra todo mundo -- mas acho que vai passar, tomara. Olha a camiseta, a estampa.
*
E, viu, esse da casa na praia e da viagem pra-daqui-a-nunca é o meu pai, não eu.
*
Nem comentei, mas é porque vou comentar o que: tu sabe que tu é foda, mesmo.
*
Sobre as palavras: apropriado as in à altura, e eventualmente as in não sei. Pode agradecer (mas não deveria, porque ainda não ganhou nada) e pode dizer que não precisa (mas não deveria, porque vai ganhar igual), tu que sabe.
*
Muita fluência que eu tenho pra escrever e-mails, sim; sofro das mesmas coisas que tu descreveu. E obrigado pelo que tu disse, sério.

É que as palavras sozinhas não querem dizer quase nada, e, bom, não-sozinhas elas não ajudam em nada; porque aí ou já era óbvio antes ou então elas são um jeito de compensar o que deveria ter sido óbvio. Sabe?
A sorveteria continua vazia, à nossa espera. As vozes que soam lá não são mais nossas.

5 de março de 2014

o carnaval

Carnaval bom é na rua, com as pessoas pulando juntas a céu aberto. Não importa se vai chover ou não, se faz muito calor ou se poderia ventar menos. E carnaval bom é carnaval do povo, sem ostentação, sem trios, fantasias e palcos grandiosos. Gente como a gente e gente de todas as idades na mesma festa.

Mas sempre tem um blasé. Ou dois. Lá parados, com as mãos nos bolsos a não ser enquanto seguram uma cerveja, estranhos ao ambiente e às pessoas em torno.

Fazem o que aqui? Quem vem pro carnaval pra ficar parado?

Um era tão sério que dava medo; o outro, mais aberto, arriscava acompanhar a música de vez em quando. Usavam aqueles chapéus, formato fedora/panamá; hipsters, ou qualquer que seja o termo em voga.

Daí eu comecei a olhar pra eles. No início porque era engraçado ver as duas figuras: as únicas pessoas paradas em meio às outras milhares, olhando pra tudo como se diante de uma manifestação grotesca de um povo aborígene. E depois porque, entre uma música e outra e as horas que iam passando, me interessei por um deles, que, louco pra dançar, se soltava mais a cada cerveja. No fim, ele me mostrou, sambava melhor que quase todo mundo ali.

Vira e mexe eu olhava pro lado e eles tinham desaparecido. Um tempo depois eu olhava de novo e lá estavam outra vez. A uma dada altura eu perdi a conta, tanto das cervejas quanto dos olhares trocados. Flerte nunca foi o meu forte. Não tenho paciência pra ficar olhando e sorrindo de canto por muito tempo; assumo que a pessoa não quer nada e deixo pra lá. Por um motivo que ainda me escapa, porém, dessa vez foi diferente. De fato perdi a paciência, mas em vez de deixar pra lá fiz o que até então não me lembrava de ter feito: tomei a iniciativa, fui até o cara e puxei papo.

*

Não há por que se debruçar sobre amores de carnaval. Noites felizes que ficam de lembrança de uma festa de quatro dias, tão amada e odiada.

Eu poderia falar da minha ansiedade: da incapacidade de esquecer a manhã e continuar dormindo ao lado desse cara da noite anterior e o resto do mundo que se dane. Poderia falar dessa minha autoconsciência destrutiva, com a qual brigo todos os dias e que tanto emperra minha vida. Poderia, ainda, falar dele: ora faceiro ora entediado, às vezes me encarando outras olhando pros lados, o chapéu escondendo os cabelos e aquele arzinho blasé e doce. O gosto de cerveja, cigarro e noite nos nossos beijos. Gremista, o filho da puta.

Os amores de carnaval. Os melhores, porque pura potencialidade - tudo o que poderíamos ser e poderíamos ser tudo. Os melhores - acabam antes de começar, morrem antes de existir. E tantas camisinhas esquecidas sobre cômodas contam as histórias desses amores de raspão.

O mundo sempre poderia acabar na noite de um amor de carnaval, e talvez um dia acabe. Mas não há por que se debruçar sobre amores de carnaval; de outro modo, não seriam amores de carnaval.