17 de março de 2013

a mentira

Coincidentemente ou não, os cabelos são cortados todo início de ano. E por vezes no inverno também. O cansaço de seis meses que não corresponderam a qualquer expectativa que se pudesse ter caem no chão de algum salão, tufos de cabelo morto. O vento bate na nuca desprotegida do frio, a pele se eriça em calafrios, sentir frio. O calor nos mata nos meses de verão e o frio no meio do ano nos lembra de que ainda estamos vivos. Ainda. Na direção contrária a tudo o que se esperava de nós. E o frio no pescoço é só a confirmação de que sobrevivemos contra nossa vontade.

É? Tu não gosta deles? Mesmo se eu cantar essa música pra ti?

Por algum tempo, você deixa toda essa merda de lado. Esquece que faz isso todos os dias, ignora que terá de voltar mais cedo ou mais tarde. Amanhã é só uma promessa. E é - será sempre. Uma promessa de vida nova, diferente, de frequentar outros lugares, de fazer outras coisas, de construir uma vida social que se sustente por mais de uma semana, de alegria, de satisfação pela pessoa que se é. Todo começo de ano. O gosto inconfundível da expectativa, mas em março tudo se mostra só retomada. Voltamos. E não temos nada.


Ele costumava ser meu namorado. Dizia que era pelo menos, sei lá, pros outros. Mas não era. Não do jeito que eu queria que fosse. A gente nunca tirou uma foto, porra. Sério. Não tem nenhuma. De nós dois juntos. E na verdade nem de nós dois juntos nem de nada que diga algo daquele tempo. Sabe do que eu tô falando? Sei lá, de algo que a gente tenha feito, de algum lugar a que a gente tenha ido, qualquer coisa. Mas não tem nada. E eu sou sincera, não sei por que uma foto seria tão importante. Digo, tu pode argumentar perguntando porque eu preciso de uma foto, eu não preciso de uma foto pra lembrar ou pra saber que em algum momento nós existimos juntos. E é verdade. A questão é que uma foto seria a prova de que a gente foi um casal normal. É. Deve ser por isso que não existe nenhuma, mesmo. 

Antes era diferente. A sensação do tempo passando agora é diferente: agora não é a passagem do tempo simplesmente, é a certeza de que agora se trata de um tempo sem chance de ser recuperado. Se o curso de francês ou de alemão não for feito agora, não poderá ser feito ano que vem. Se as coisas não forem feitas agora, é provável não sejam feitas nunca. Porque não haverá tempo e há cada vez menos tempo. Já não tínhamos nada antes, mas antes tínhamos tempo.


Não, é que não tinha isso, sabe? A gente não falava muito. Digo, a gente falava, óbvio. A gente conversava muito, às vezes até demais. Praticamente sobre qualquer coisa que tu puder imaginar, eu acho. Mas não sobre nós. Sabe? Era meio como se fosse um assunto proibido. Não tinha DR nem nada disso. Talvez por isso fosse tão bom, mas talvez por isso também tenha dado tudo errado depois, não sei. É difícil saber quando não se fala, né. E aí fica essa sensação de pendência, de uma coisa que foi interrompida e não que acabou de verdade. Mesmo que se saiba que acabou, a sensação nunca vai poder ser essa.

Voltar é dar de cara com os passados que se gostaria de apagar. Ou de alterar por completo. Outros rostos frequentariam a sua casa, o seu rosto no espelho seria outro, haveria uma estação de metrô a duas quadras do seu prédio, você gostaria do que vive, as pessoas saberiam quem você é. Voltar é continuar contando mentiras. Todos os dias. Mas viver mentiras já é outra coisa: você não sabe se vive uma mentira porque mente sobre sua vida ou se porque inventa uma que não existe quando ninguém está olhando.


Uma vez ele chegou lá em casa meio acabado, assim, dava pra ver no rosto dele. Ele entrou e se jogou na cama, e quando eu cheguei perto vi que ele tava com os olhos vermelhos. Disse que tinha brigado feio com os pais e os irmãos em casa e aí tinha chorado muito. De raiva, de tudo. O que eu sabia exatamente como era, porque acontecia comigo com mais frequência do que eu queria admitir. Mas foi rápido, em questão de minutos tava tudo bem, e a gente tava lá, preparando a janta, os dois sorrindo. Já não me lembro muito bem das coisas. São flashes de memórias de momentos. Nossa vida secreta a dois.


É uma droga na maior parte do tempo, não tem por que negar isso. Não é feio, não diminui ninguém. A vida é uma farsa, vamos, diga. Você é uma farsa. Sempre chega um tempo em que quase tudo ao seu redor, a matéria de que sua vida é feita, se é que se pode chamar de matéria, é formada de lembranças, sensações, desejos realizados ou reprimidos, tudo o que não é concreto. Cada dia é futuro e depois passado e você não sabe bem como precisar quando deixa de ser um para ser outro. Você é futuro e é passado, mas nunca é presente. Somos todos fragmentos.

Eu não sei se ele gosta de mim. Se gosta mesmo, sabe, de verdade. Se ele pensa em mim, se às vezes sente falta da gente, se ele tem vontade de estar comigo. De estar, não de ficar. Não sei mesmo. Quer dizer, eu não consigo acreditar que seja possível uma pessoa se sentir em relação a outra da maneira como eu me senti e isso ser uma coisa só, que só eu tenha sentido, que só eu tenha percebido. Não é assim. Gosto de pensar que é o tempo. Que tudo foi por causa do tempo. Que a gente se conheceu em momentos diferentes, de desejos diferentes, e que o tempo que passou desde então e que continua passando é o tempo que a gente precisa. O tempo que vai levar pra gente se resolver. O tempo necessário pra voltar.

É tudo mentira. E tudo é mentira. Cada palavra escrita ou falada. Você que lê ou fala: não acredite em nada. É verdade.

1 de março de 2013

o amor

Só mais uma convenção, como tudo na vida, como tudo em sociedade, a sociedade é uma obrigação, ninguém vive em sociedade porque quer. Faz sentido. Mas não. As pessoas, nossos colegas, nossos amigos, essa noite, esse momento, isso é bom, não é? Mas ele não disse que era ruim, ele só disse que é uma obrigação. Uma parte de mim é assim, o inferno são os outros, e outra parte de mim é assim: o inferno sou eu.
Ele costumava ser uma boa companhia. Sabia rir, sabia conversar, sabia não se levar a sério. O problema é que sabia não me levar a sério também. Um poste, um apêndice, um avestruz a tiracolo. Como se não pudesse falar. Minha boca ensaiava as palavras, mas se sobravam palavras faltavam razões para dizê-las. Como é possível que eu ainda queira dizer algo? Nunca tive uma resposta, nós nunca conversamos. Mas sempre há o que dizer. Me liga, quero saber como foi teu dia, dizer boa noite. Quanto mais as pessoas me ignoram mais eu vou lá e falo com elas. O fim. Mas eu quero fazer uma coisa antes que o mundo acabe. Não, agora já passou, não acaba mais. Mas acaba um dia.
E eu me sentia ridícula quando pensava nisso, quando ia lá falar com ele. E também me sentia ridícula quando pensava na gente dançando. Tentava imaginar como seria, porque além de nunca conversar nós também nunca dançamos, e sentia vergonha e me sentia ridícula. Ele exercia esse tipo de força sobre mim, essa sensação de ser ridícula. Extremamente ridícula. Talvez por causa da postura, meio distante, meio independente, meio te-amo-mas-não-me-importo. Ele sempre disse que nunca soube com aquele tipo de situação, que nunca ia saber lidar. O que é uma tremenda idiotice, porque a questão nunca foi saber ou não saber. Ele nunca quis. E mesmo assim eu me sentia ridícula. Minha imagem no espelho no fundo do bar, meu rosto não atraente, o balanço arrítmico e desengonçado do meu corpo – patético, um desastre em forma de ser humano. É isso o que você é.
Quantas vezes tu já amou? pergunta o cinquentão fora de forma bebendo cerveja em taça de vinho. Não sei, eu digo. Não, tu sabe, sim, no fundo a gente sempre sabe. Como eu posso saber? Eu posso conhecer alguém hoje ou daqui a um mês e me apaixonar e descobrir que antes não era nada. Não, a gente sabe quando ama. A gente sente. Um velho completamente aleatório. Que depois de dez minutos começou a me deixar cada vez mais desconfortável, parado ali, de pé do lado da minha mesa, bêbado, falando sobre o amor perdido da vida dele. Que se dane o seu amor perdido, senhor, eu não dou a mínima. E que diferença faz quantas vezes eu amei se em nenhuma delas eu fui amada. Vou dizer de novo, senhor: eu não dou a mínima.
Existe uma falha fatal por trás dessa lógica do amor. Esse nosso amor. Ou será o amor que eu já tive? Mas não existe verdade, existem percepções. Catorze bilhões de olhos de diferentes lugares olhando para o mesmo lugar. E nenhum deles é capaz de ver o que eu vejo e eu não sou capaz de ver o que eles veem. Eu minto todos os dias. A beleza da solidão não se deixa ver assim, fácil. Demora. E enquanto isso eu me olho pelos olhos dos outros e não vejo nada. Mas como possivelmente alguém pode esperar enxergar alguma coisa sem se demorar? Vão dizer que a vida está passando por você porque não entendem a necessidade de contemplar. E que isso leva tempo.
Nós nunca conversamos, nunca dançamos e também não queremos crescer. Talvez porque chegue com os primeiros respiros da vida adulta a certeza do que antes era só uma desconfiança. Outras vidas podem valer mais a pena. Essa, só com amor. Sem amor, você não é nada, está fadado ao fracasso. O fundo é solidão, mas a superfície é o inferno.