13 de novembro de 2019

uma dessas feministas


- Tu não é uma daquelas feministas, é?
- Sou, sou uma daquelas.

Nada de particular sobre aquela manhã em Porto Alegre. O filtro de caridade branca que envolvia o dia. Nos primeiros dias de março, o verão ainda queimava.

Minha regata vermelha, a camiseta cinza dele do New Order, nossos all stars - meu all star azul combina com o seu preto de cano alto. Não era de cano alto. Éramos jovens até demais.

Mas a lembrança não é do calor. A pele retém sensações, mas não consciências. O calor, a dor, um toque, a chuva. Para lembrar, sempre é preciso sentir tudo de novo.

O que teria mudado se eu tivesse dado essa resposta?

Sim, sou uma dessas feministas.

***

A Venâncio como sempre, feita céu e carros que a gente não vê.

Às vezes me perco. Começo e quando vejo não sei como cheguei até ali. Nunca tinha reparado nessa fachada. Como as pessoas conseguem andar mexendo no celular? Por que não é possível esperar? Com que atenção se responde qualquer coisa desse jeito? Atenção. Será que a gente ainda é capaz de algum tipo de atenção? A qualquer coisa.

Colégio Militar, João Pessoa, Lima e Silva. Dobramos.

- Uma vez a mãe da minha ex ligou. Disse que tava no hospital, que a Luísa tinha tentado se matar. Tava puta comigo.
- Quê?
- É.
- Sério isso?
- Sim. Mas né, ela tinha uns problemas.
- Ah tá.
- Oh, é aqui.

Ela devia ter algum problema.

É o que nos fazem acreditar. E contam assim, como quem fala das piadas ruins no almoço de família.

Louca. Exagerada. Emotiva. Sentimental. Não entendeu direito. Sensível demais.

Entende?

***

Azul e cinza se intercalam, dia um dia outro. Tem os carros que passam no fundo, a sirene de uma ambulância, pássaros, uma obra no prédio vizinho. Vozes sem rosto e rostos sem voz.

Nunca mais te vi e nem quero.

Todo esse futuro pela frente e não saber o que fazer com ele. A gente sempre encontra jeitos de matar o tempo. E desculpas para não encará-lo. Até o dia em que ficam apenas os arrependimentos - tu vê, o tempo passou.

O medo é essa sombra sem forma.

Enquanto tudo parece ter uma sequência e todos parecem ter um plano. O que eu sou? Quem eu devo ser no mundo, agora que não sou mais quem era?

Outro dia percebi: eu não entendia direito, na época. Ainda não era uma dessas, feministas.