27 de fevereiro de 2009

às moscas

"You'd better look alive", they said.


Eu não sei se tenho estrutura emocional para contar uma história dessas. Digo isso por vocês, já que ela possivelmente os afetaria profundamente, e isso me deixaria para lá de chateado, não sei se agüentaria imaginar tantos rostinhos tristes. Em nome da minha honra, no entanto, e na tentativa de deixar meu nome nas páginas da História, ainda que entre os figurantes (e, entre esses, na subcategoria de prováveis lunáticos, mais tarde vocês entenderão por quê), eu irei contá-la.

No decorrer da leitura, talvez vocês achem que é uma verdadeira tragédia e se surpreendam com minha indiferença. Mas, quando se se diminui drasticamente de tamanho, é preciso selecionar bem o que deixar na cabeça, por conta da falta de espaço. E eu escolhi manter minhas lembranças, minha capacidade de raciocinar (mesmo danificada), nenhum sentimento-sentimento (o que acontece aqui é que sentimentos, sejam quais forem, normalmente são grandes. Se eu quisesse guardar o amor por minha esposa, por exemplo, não sobraria espaço para praticamente mais nada) e, claro, meus reflexos.

Em vida, eu costumava ser um sujeito bastante normal. (Preciso dizer que já não sei bem qual é minha real concepção de normal. Ou de real. No estado em que me encontro, as coisas se confundem bastante.) Um velhinho boa-praça, que comprava seu jornal diariamente na banca e o lia na padaria da esquina tomando um café antes de levar pão para o café da manhã da família. É, eu vivia com toda a minha família: minha esposa, meu filho e minha nora e meus três netos, dois já crescidos e um ainda criança. Morávamos na casa do meu filho. Uma casa boa. Grande, dois andares, espaço suficiente para as crianças crescerem felizes e livres, mesmo na companhia de duas peças de museu vivas e falantes - e já um pouco surdas, também.

Acreditem se quiserem, eu e minha mulher fizemos bodas de ouro. Nós nos aturamos por mais de 50 anos! Qual é? Isso não é para qualquer um. Eu me considero um herói. Inclusive, acho que deveria ter recebido, nem que fosse no velório, algum tipo de medalha de perseverança. Toda pessoa sabe, em seu íntimo, o quanto é difícil aturar outra. Se um ano pode ser quase uma tortura, imaginem 50. Era o mínimo que deveriam ter feito por mim. Uma menção honrosa, uma homenagem a um homem que passou 71 anos enfrentando a TPM alheia mensalmente (tudo bem, menos de 71, nesse caso), superando crises, tendo de tolerar todos os tipos possíveis e imagináveis de chiliques, manias e neuroses femininas.

Mas não. Nem uma musiquinha no fundo para dar uma animada no ambiente e no pessoal, acreditam? Ficaram todos lá, em pé ou sentados em volta do caixão, chorando as pitangas e recebendo abraços de gente que nem conheciam. A falta de educação chegou a tal ponto que nem uns comes e bebes foram capazes de oferecer. Como se já não fosse um sacrifício ir a um velório, aquele tipo de coisa horrível que todo mundo só faz por obrigação. Aliás, não sei de onde tiraram que é obrigação. Coisa de seres humanos. Seres humanos e suas excentricidades. Estou para ver tipinho mais estranho - e com costumes mais estranhos ainda - que esse.

Na verdade, já não estou para ver mais nada, mas a força de expressão prevaleceu.

Bem, esse incidente (minha morte) aconteceu numa tarde de domingo. (Graças a Deus, quase literalmente, um pouco de movimento para o dia mais parado e entediante da semana.) Morte natural, mesmo bebendo e sambando na gafieira toda semana. (Religiosamente. Nunca perdi um samba, ainda mais na companhia da minha morena; suponho, então, que meu lugar pras bandas lá de cima esteja mais que garantido.) Mas, com 96 anos, meu chapa, o que você esperava? Eu bem queria chegar aos 100. Ou às bodas de diamante. Seriam mais dois feitos para ajudar a deixar meu nome na História num lugarzinho um pouco melhor.

No momento exato da coisa, eu estava deitado em minha cama, pronto para usufruir de mais um soninho da tarde. À medida que eu adormecia, no entanto, percebi que aquilo não parecia nem um pouco com adormecer, de fato. A sensação de tudo parando por dentro ao mesmo tempo deve ser comum em máquinas velhas quando param de funcionar depois de levar aos extremos, e finalmente esgotar, sua capacidade, mas não é comum em seres humanos idosos antes de seu sagrado sono vespertino. De alguma forma, eu soube disso naquele momento. Alguma coisa estava errada.

Então, eu fiz o maior escândalo da minha vida. Levantei em um pulo, aos berros, ligando para a ambulância com o telefone fixo e para a polícia com o celular, disse à empregada que ligasse também para os bombeiros, abri a janela do quarto e gritei a plenos pulmões que ia morrer, atraindo a atenção de toda a vizinhança e, em poucos minutos, juntando uma pequena multidão ali em baixo. Apareceram fotógrafos, jornalistas e repórteres da Globo, do SBT e da Record, que se amontoavam sob minha janela, disputando a tapas e pontapés os melhores lugares e ângulos para as fotos e filmagens. Um pouco mais ao longe, também pude ver homens de branco ao lado de um furgão branco acolchoado por dentro. Não compreendi por que estavam ali, mas naquela hora eles não me preocupavam. Muitos flashes. Toda a empolgação que minha morte merecia.

É um desapontamento e um arrependimento terríveis para mim que isso tudo tenha sido meu derradeiro pensamento. Eu deveria mesmo ter feito um escândalo, o maior já visto, se possível, juntado uma multidão ao redor da casa e tudo o mais. Com isso, sem dúvida, meu nome ficaria na História. E daqui a intermináveis gerações ainda se ouviria falar a respeito do homem que fez de sua morte um episódio público histórico. Mas, como vocês já sabem, eu tinha 96 anos. E, com 96 anos, fica difícil até discar 190 no telefone. Seria fisicamente impossível levantar, abrir a janela, gritar a plenos pulmões que iria morrer e ainda sobreviver ao baque para distinguir símbolos de emissoras de televisão.

Não tenho certeza agora, mas imagino que tenha sido complicado e desgastante mesmo pensar em tudo isso. Coisas cansativas e pesadas são cansativas e pesadas até quando são só pensadas. Toda minha energia sempre foi gasta muito metodicamente. Jornal e padaria de manhã, um bom sono à tarde para recarregar e aquela cervejinha e aquele sambinha nos finais de semana para fazer a dieta e o cuidado do resto da semana valer a pena. Então, enquanto eu pensava no que poderia acontecer depois que eu avistasse os repórteres e os homens de branco, meu corpo provavelmente não deu conta de tanto exercício e do sobre gasto de energia daí decorrente e padeceu. Eu morri.

O que aconteceu então foi a coisa mais estranha de toda a minha vida. Pudera, eu estava morrendo, e a morte certamente é a coisa mais estranha pela qual uma pessoa pode passar. Bem, na verdade, ninguém passa pela morte realmente, mas, ainda assim, foi muito estranho, eu garanto. Senti como se meu corpo estivesse se desintegrando e sendo sugado para algum lugar muito, muito pequeno, onde sem dúvida ele não caberia. Tudo escureceu e eu ouvi vozes. Eram palhaços que diziam que eu deveria me comportar enquanto minha cabeça estivesse passando pelo teste. "O quê?", eu perguntei. Ou tentei perguntar. Aquilo era demais para um velho da minha idade. (Ainda é.) Mas os desgraçados eram uns sarcásticos, só riam, riam, riam.

E foi assim, em meio a risadas maléficas que eu começava a acompanhar, que tudo escureceu novamente. Acordei da morte, então, e quase morri outra vez. Antes que pudesse tomar conhecimento do meu estado, vi uma coisa verde cheia de furos vindo em minha direção. Vocês têm idéia do susto que eu levei? É o equivalente a estar dormindo e acordar deitado nos trilhos de um trem que vem a toda velocidade. Só tive tempo de tentar pular para o lado, mas, para minha surpresa, aconteceu mais do que isso. Eu voei!

Fechei e abri os olhos para ter certeza de que não estava sonhando, mas não, eu estava mesmo voando. Sob meus pés, potes imensos de margarina e geléia, xícaras, pratos e talheres gigantes, uma caixa de leite maior do que um edifício. Primeiro, eu vôo, e depois as coisas aumentam de tamanho. O que estava acontecendo, afinal? Quando encontrei um lugar aparentemente calmo, pousei. (Meu Deus! Quando, em vida, eu iria imaginar que ainda usaria o verbo "pousar" comigo. Quero dizer, aviões pousam, pássaros pousam. Pessoas - a menos que estejam de pára-quedas ou asa-delta, e esse definitivamente não era meu caso - não pousam.) Olhando ao redor, percebi que o lugar não me era estranho. Aquela mesa, aqueles armários, aquela caixa grande branca...

Nesse momento, uma velha entrou. Baixinha, cabelos brancos... Só. E o que mais dizer de uma velha? Todas são baixinhas e têm cabelos brancos, quando não os pintam. Ela usava uma roupa de caminhada do tipo que as velhas usam e, quando ela virou, eu levei um susto. Não pelas rugas, que também eram de assustar, mas porque eu a conhecia. Era minha esposa! (Eu casei com isso?) E aquele lugar esquisito era a cozinha da minha casa.

Como já estava um pouco familiarizado com o processo, dei outro pulo e de novo saí voando. Não havia nada vindo em minha direção, dessa vez, mas eu precisava de um espelho. No caminho para o banheiro, quase fui atropelado pelo meu próprio neto, que corria para a cozinha. Quando finalmente cheguei, levei o segundo susto em menos de meia hora. Eu não aparecia no espelho. "Será que eu sou um vampiro?", pensei. Então, voando de um lado para o outro, tentando desvendar aquele mistério, notei um pontinho preto se movendo no espelho. Quando eu ia para a esquerda, ele ia para a esquerda, quando eu ia para a direita, ele ia para a direita. Assim ficamos por alguns segundos, até que eu levei meu terceiro susto e me dei conta de que o pontinho era eu, eu era o pontinho. Cheguei mais perto do espelho para vê-lo melhor (minha vista já não era muito boa antes, imaginem agora). Quarto susto: o pontinho era uma mosca. Uma mosca! Logo, se o pontinho era eu, eu era o pontinho e o pontinho era uma mosca, eu era uma mosca. Uma mosca!

Uma mosca! Já pararam para pensar nas maravilhas de ser uma mosca? Uma criaturinha suja e insignificante, odiada por todos os seres humanos? Fantástico! (E eu não estou sendo irônico, ironia não caberia no meu cérebro. Nós, moscas, somos seres de estrutura muito simples, sabiam? É, eu tenho aprendido um bocado sobre minha nova espécie.) Mas eu tinha menos de um mês de vida pela frente (se não fosse pego antes), era melhor aproveitar. Reconheci o território que eu já conhecia, mas quando se é uma mosca é preciso saber quais são os lugares seguros, e saí para dar uma volta ao ar livre.

Rondando o lixo, conversei com uma companheira que me explicou sobre a vida. Entre outras coisas, ela disse que vinha da família vizinha (acidente de carro), mas que era perigoso ficar muito tempo dentro de casa, "eles se irritam fácil com a gente. Do matador dá pra escapar, mas inseticida é complicado". Depois de mais alguns minutos de conversa, nos acasalamos. (Mais um verbo pra lista dos impensáveis.) Minhas larvinhas nasceriam em dez dias. Eu seria pai mais uma vez! Só uma hora de vida como mosca e eu já tinha tido mais emoções do que costumava ter em um ano como homem. Sabem, não sinto a menor falta daquele tempo. Vidinha mixuruca e sem graça. As pessoas acham que são felizes porque não sabem o que as espera. Isso sim é que é vida!

Alguns dias depois, quase perto do fim natural de toda mosca, eu estava saboreando uma picanha, quando aquele objeto verde e esburacado, cujo nome eu prefiro fingir que não lembro, veio para cima de mim outra vez. Mas eu já tinha prática. Com quem meu filho achava que estava lidando? Eu não era uma mosca qualquer! Escapei, mas acabei pousando nos tomates, por descuido, e de novo tentaram me acertar. Escapei mais uma vez e então tomei o cuidado de voar para mais longe. Pousei no fogão e fui para debaixo da fruteira, ali eu estaria a salvo.

Esperei alguns minutos e saí. Àquela altura, já estava mais do que provado que minha vizinha estava certa: é perigoso ficar tempo demais em casa, sua família vai tentar - e provavelmente conseguir - te matar. Disposto a seguir os conselhos dela, voei em direção à janela. Qual não foi minha surpresa quando descobri que o inimigo estava à minha espreita: novamente jogaram aquele instrumento de tortura contra mim. Não alcançando meu destino, tive de pousar na pia. Era para ser um pouso rápido: da pia, eu iria para o forno, e dali para a liberdade - ah, a liberdade! Mas vi meus planos indo pelo ralo quando, no exato momento em que eu ia levantar vôo, a coisa verde e esburacada me prensou contra a pia. (E se manteve ali por alguns segundos para se certificar de que eu não iria escapar.)

Meu frágil corpinho foi esmagado contra aquela superfície cinza e gélida. Quando meu filho (meu filho!) retirou o verde de cima de mim, eu mal podia mexer uma ou duas perninhas. Sabem, a sensação de ter o corpo esmagado é bastante dolorida, claro, mas também é engraçada. É exatamente o que nós imaginamos, ou tentamos imaginar, quando vemos nos desenhos animados. Alguém poderia ter filmado. Já que minha morte humana não foi registrada, a animal poderia ser, nem que fosse para ser mostrada em uma daquelas reportagens do Globo Repórter. Eu ficaria feliz até com um vídeo para uma aula de ciências. Mas é claro que não filmaram. Será possível que essas pessoas (que nojo!) nunca ouviram falar em "último desejo"? Francamente.

Depois de quase morto (porque nem para isso pessoas servem, não conseguem sequer matar uma mosca direito), eu fui jogado no lixo, onde encontrei amigáveis restos de comida e simpáticas cascas de banana que me receberam calorosamente. O meu novo lar - e futuro túmulo - não era nada ruim, até me proporcionou uma última refeição. Então, mais uma vez, eu senti que não agüentaria. E, de repente, como num piscar de olhos, ali estava eu, morto outra vez. Literalmente uma mosca morta.

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